Da série “Janta Filosófica“.
Em nossa Janta Filosófica nº54 falei sobre o preconceito linguístico e relacionei com o conceito de poder simbólico de Pierre Bourdieu.
Utilizei como base o livro do Marcos Bagno, Preconceito Linguístico: o que é, como se faz e o artigo de Marcos Felippe de Jesus Lima intitulado A relação entre a língua e poder na obra de Pierre Bourdieu. Este artigo aborda uma ligação interessante: a denúncia do preconceito linguístico e sua estruturação como elaborada por Bagno e a noção de que há um poder específico circulando no mercado de trocas linguísticas, a partir de um capital linguístico, como Pierre Bourdieu trata em seu livro Economia das Trocas Linguísticas.
Veja o vídeo:
Aqui, o áudio:
Abaixo, um trecho da transcrição da live:
Talvez nos modos, nos usos que seja possível introduzir Bourdieu. No processo da linguagem há uma relação entre dominantes e dominados que envolve o bom uso linguísticos, a etiqueta necessário para o uso de certas palavras ou expressões, a presença dos sotaques, no fim, no uso honesto, quase que natural de cada agente social.
O falante, diz Bourdieu, é conduzido, coagido, a moldar a maneira como fala, como escreve, como gesticula, como produz signos em determinados espaços.
Um falar próximo à norma culta é esperado num jantar de gala, mas num ambiente menos formal, as expressões que são utilizadas no dia a dia não só estão liberadas como, de certa forma, são a norma da prática social no local.
A normatização acontece desde o primeiro dia de vida de um ser humano, mas a normatização oficial, que funciona como mecanismo de reprodução das desigualdades, esta acontece primeiramente através do sistema escolar ao impor a língua oficial e em sua versão culta. Aqui, eu cito Marcos na íntegra:
Essa “adaptação” do falante à normatização da fala ocorre desde o seu primeiro contato com a escola onde ele aprende o que é correto e o que é errado conforme o que é dito pelo professor. Como a escola é um ambiente de aprendizado e uma instituição, através da qual a sociedade estabelece as diretrizes para a capacitação e competência dos indivíduos, há, portanto, um processo de conscientização baseado nos modelos sociais a fim de incluir o indivíduo socialmente. Existente, portanto, um poder coercitivo que, desde cedo, molda os indivíduos no que se refere à linguagem e ao comportamento social. Como a linguagem e os costumes sociais estão intimamente ligados ao ambiente em que o indivíduo se encontra nem sempre a criança consegue lidar com aquele universo que destoa do seu convívio habitual. A criança, então, muitas vezes acaba reprimindo-se e evita agir de determinada maneira com receio de que aquele seu comportamento seja motivo de crítica ou zombaria por parte de terceiros. Naturalmente, ocorrem vários desvios por causa dessa não-normatização ensejando em alterações de poder. Um indivíduo que, naturalmente ou voluntariamente, se opõe às condições do estatuto social passa a ser excluído ou discriminado pelo que a sociedade convenciona como “ideal”. Portanto, recompensas ou sanções estão intimamente ligadas ao modo como o indivíduo manifesta a sua fala e o conduz a uma preocupação no que se refere a produzir discursos ajustados a vários tipos de mercados lingüísticos.
E é interessante uma citação de Bourdieu que caracteriza como o processo de normatização não acontece no nível das escolhas individuais, no nível da consciência, mas no nível das práticas e da distinção:
O reconhecimento ou não da legitimidade da língua oficial independe de um ato intencional de aceitação de uma “norma” ou “crença expressamente deliberada”. Essa reflexão precisa emergir nas discussões sobre a leitura e o “ensino da leitura” marcados no âmbito do letramento. Adquirir uma língua legítima (que pode ser vista como expressão de um mundo legítimo) faz parte de um processo lento que se coloca num estado prático através de disposições (não perceptíveis) originárias de sanções do mercado lingüístico. Logo está fora de qualquer coerção conscientemente sentida.
Isso, claro, delimita o objeto que está sendo tratado pelo autor e também por nós aqui: não estamos falando sobre pessoas preconceituosas linguisticamente, caso isso exista. Estamos falando de práticas sociais que, independentemente de qualquer consideração de nível psicológico, ensejam relações objetivas. Os 6 mitos que eu comentei no início da live, os 6 mitos sobre a língua portuguesa que funcionam como referências para se compreender o funcionamento do preconceito linguístico no Brasil, não fazem parte simplesmente de uma ética individual mal praticada. Não é este o objeto.
As práticas sociais subjacentes aos pontos descritos firmam e expressam, desta forma, atualizam, relações de dominação. São práticas de dominação. No mercado linguístico, aquele que tem menor capital linguístico seria, talvez, o pobre, que por sua falta de acesso às ferramentas que o introduziriam à língua em sua forma culta, já sinalizam sua posição social.
O poder da linguagem também pode ser visto nas maneiras como ela é utilizada num espaço com hierarquia. Por exemplo: um funcionário expressar uma ordem ao seu patrão talvez não seja muito bem aceito, enquanto o contrário é até esperado.
O grande ponto aqui é que a dominação não é exercida somente através da força bruta, mas também através de meio que não são perceptíveis no dia a dia e talvez nem sejam considerados formas abusivas até mesmo por suas vítimas. A violência simbólica é justamente isso, quando o agente submetido ao poder simbólico incorpora os objetivos da classe dominante e os insere como objetivo próprio. Trata-se do professor que foi educado através da violência e assim a repete e até mesmo a considera necessária e vital para o desenrolar da prática pedagógica.
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